Uma Viagem
Vejo a ondulação das folhas nas árvores, vejo-as dentro de mim mesmo, o pulsar do coração ansioso numa espécie de solidão propositada. O céu tingiu-se de cinza, ontem era azul. Aos poucos deixam as folhas de ondular, aos poucos congela o mundo num silêncio sufocado. O tempo parou. Só não morreram as memórias. Não sei esquecer. Talvez, aos poucos.
Vim para me perder de mim, fugir da minha consciência maliciosa, reaprender a respirar, e ainda assim tentei nos outros obter a minha própria felicidade. Má ideia de se ter entre humanos. Deveria ter aceite a proposta do gato boémio e trazer a sua filosofia de jovial sensualidade. Mas as escolhas acertadas são sempre as piores de prever.
Realmente perdi-me. O ar que respirei era doce, um aroma quente e suave. Até o olhar nervoso se perdeu em múltiplas manchas de cor que salpicavam telas longínquas, com casinhas e montes e um rio e um lago e um moinho e todo um leque de pormenores a serem explorados. Por momentos era uma criança pequena a deixar-se embalar pelos cantos de tudo o que me rodeava, nas mais perplexas sinfonias. Ao fim de dois anos, deixei que o sol me beijasse a pele sem qualquer tipo de preconceito, arrefecendo-o em artificiais mergulhos lentos enxutos em palavras e cigarros estendidos no corpo adormecido, na mente aconchegada. Desta vez os sentidos despertaram no seu mais primitivo desejo, liberdade.
Passou uma semana e ainda não me habituei a mim mesmo. Tenho tempo, mas ninguém disponível na minha vontade. Escuto um fim de semana de festas à moda de Lisboa, uma cidade que cedo aprendi a amar, respondendo-lhe com desprezo desmerecido.
O rio no horizonte, observá-lo é uma tentação a fazer das suas vagas prateadas um manto. Vejo que também o contempla, mantendo-me silencioso. Confesso que a vontade de ir ter com ele, perguntar-lhe porque aqui se procura, que sonos alcança em cada gaivota que segue de olhar escondido, por quem espera, é de fazer hesitar. Mas as palavras que procuraria ter coragem para libertar morrem antes de chegarem aos lábios, mesmo antes de sentir necessidade de os morder. E ele parte como as ondas, na sua indiferente rebentação.
Um barco aproxima-se vagarosamente. Poderia metamorfosear-se numa ancestral caravela, oferecendo-me passagem para um novo mundo? Teria eu coragem de embarcar e partir, sem pertences, levar-me apenas? Será que não me deixaria ficar a vê-la partir e afundar-se no fim do mundo? Será isso viver?
Termino com três opções para esta noite, e nenhuma me parece tentar o suficiente…tal como o Mundo…tal como os seus humanos…
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