quarta-feira, junho 30, 2010


Palavrear

Palavras na terra quente
São de quem sente
Fantasmas sem forma
Talvez gente

Nas estrelas, a sombra
Olhos de lua nova
A ferir com prazer
Essa cede de beber em sujas mãos

Palavras em terra de ninguém
Não se sabe de onde
Vieram do rio
Naufragadas talvez

Esperavam morrer
Sonhavam vencer
Cresceram no mármore azul
Para velar a lua

Não serão palavras
Pedaços de vida e de morte
Palavreados
De todos os que as perderam

segunda-feira, junho 21, 2010


Pressenti a chegada de uma qualquer melodia perdida sobre o rio. Soube-me a fantasia indiscreta, a sonhos e a viagens medievais perdidas nesta mesma cidade, nas sombras de outro tempo. Será imaginação provocada pelo transbordar de desejos, distraídos pelo sensabor rotineiro? Ou uma justificada vontade de estar orgulhosamente senil?
Aguardo que o fogo se extinga num altar de cinzas sem deuses que me guardem. Hoje quase que alcancei o que não tenho dedos para tocar, e o pó que ontem abracei faz-me esquecer que fui feiticeiro numa cidade de ilusionistas onde a música se deixa morrer em constelações efémeras. Quis segui-la, debruçando-me sobre as telhas ainda quentes, mas a cobardia fez-me ser apenas um observador de limitadas palavras. Um observador com os olhos cheios e de mãos vazias; com o coração a transbordar de memórias sensoriais, sendo que, na sua maioria, de duvidosa existência. Se os fechar, conseguirei ver? Conseguirei estender as mãos num infinito movimento e alcançar a certeza dos meus gestos? Conseguirei não me perder?
Ainda e oiço, distante, trazida pelo vento que me lambe a face com sabor a lua e a mar. Será real ou apenas uma ilusão de estado de espírito, ou uma necessidade? Será de relevante importância a sua origem?

O fogo extingue-se e num momento desprovido de luz, de sombras, de senso comum, sinto segurar-me a mão sem medo, sem preconceitos, sem palavras, sem promessas, leva-me a consciência, o pudor, as memórias, e deixa para traz o corpo adormecido, a ingenuidade de sonhar contos de fadas. Esse nada que me resta guardá-lo-ei como se guardam as estrelas, com desprendimento.

sábado, junho 12, 2010


Uma Viagem


Vejo a ondulação das folhas nas árvores, vejo-as dentro de mim mesmo, o pulsar do coração ansioso numa espécie de solidão propositada. O céu tingiu-se de cinza, ontem era azul. Aos poucos deixam as folhas de ondular, aos poucos congela o mundo num silêncio sufocado. O tempo parou. Só não morreram as memórias. Não sei esquecer. Talvez, aos poucos.
Vim para me perder de mim, fugir da minha consciência maliciosa, reaprender a respirar, e ainda assim tentei nos outros obter a minha própria felicidade. Má ideia de se ter entre humanos. Deveria ter aceite a proposta do gato boémio e trazer a sua filosofia de jovial sensualidade. Mas as escolhas acertadas são sempre as piores de prever.
Realmente perdi-me. O ar que respirei era doce, um aroma quente e suave. Até o olhar nervoso se perdeu em múltiplas manchas de cor que salpicavam telas longínquas, com casinhas e montes e um rio e um lago e um moinho e todo um leque de pormenores a serem explorados. Por momentos era uma criança pequena a deixar-se embalar pelos cantos de tudo o que me rodeava, nas mais perplexas sinfonias. Ao fim de dois anos, deixei que o sol me beijasse a pele sem qualquer tipo de preconceito, arrefecendo-o em artificiais mergulhos lentos enxutos em palavras e cigarros estendidos no corpo adormecido, na mente aconchegada. Desta vez os sentidos despertaram no seu mais primitivo desejo, liberdade.

Passou uma semana e ainda não me habituei a mim mesmo. Tenho tempo, mas ninguém disponível na minha vontade. Escuto um fim de semana de festas à moda de Lisboa, uma cidade que cedo aprendi a amar, respondendo-lhe com desprezo desmerecido.
O rio no horizonte, observá-lo é uma tentação a fazer das suas vagas prateadas um manto. Vejo que também o contempla, mantendo-me silencioso. Confesso que a vontade de ir ter com ele, perguntar-lhe porque aqui se procura, que sonos alcança em cada gaivota que segue de olhar escondido, por quem espera, é de fazer hesitar. Mas as palavras que procuraria ter coragem para libertar morrem antes de chegarem aos lábios, mesmo antes de sentir necessidade de os morder. E ele parte como as ondas, na sua indiferente rebentação.
Um barco aproxima-se vagarosamente. Poderia metamorfosear-se numa ancestral caravela, oferecendo-me passagem para um novo mundo? Teria eu coragem de embarcar e partir, sem pertences, levar-me apenas? Será que não me deixaria ficar a vê-la partir e afundar-se no fim do mundo? Será isso viver?
Termino com três opções para esta noite, e nenhuma me parece tentar o suficiente…tal como o Mundo…tal como os seus humanos…