quarta-feira, dezembro 29, 2010



Lembras-te
Das palavras dos outros dias
Das promessas vagas
Contra o corpo?

Todas as vontades eram sonhos
Todos os sonhos eram teus
De mim nada restou.

Lembras-te
Desses outros dias
Em que o Tempo era feito de vontades
Improvisadas?

A partida sem destino
Porque era a viagem o sentido
De um rumo (in)certo.

Quanto de mim esperas
Quanto espera o mundo
De nós
Dos outros?

É a fé que os move
Por todos esses deuses
Tão humanos como o não somos.

terça-feira, dezembro 14, 2010



Desfolhando

São folhas de Outono
Todo esse ouro caído
Como beijos a ferir a pele
Tão minha, de mais ninguém.

Despem-se silenciosas
Em amargos gestos
De estranho pudor
Magros membros que escondem a dor
Tão minha, de mais ninguém.

E se outros olhos vêm morte
Além da dura casca
Será o ruir de frágil ambição?
Dir-te-ia ao ouvido:
É o meu coração
Tão meu, de mais ninguém.

Não é solidão
É um tempo que corre
Tempo que é meu
E de mais ninguém…

quinta-feira, novembro 25, 2010


Vive
Só mais um dia
Sem prometeres voltar
Meu país

Dá-me o prazer da saudade
A tua história heróica
Dá-me tempo
Assim como os deuses o vento
Nas tuas velas
Nas tuas naus

Vive
Só por agora
Enquanto dedilhas a guitarra
Com o vinho doce nos lábios
E o fado no coração

Vive
Hoje e não amanhã
Para que te chore se partires
Para que te lembre assim
Como um povo com armas na voz
E não como mendigo moribundo.

domingo, novembro 14, 2010


Sou das manhãs escondidas
Num véu de saudade consentida,
Essa cor esvoaçante
Onde nada se vê, sente-se apenas.

É nas margens de um rio urbanizado
Que me faço vento nas nuvens
Como velas que mudam um mundo
À descoberta de sentido humano:

Não se encontra se não se vê
Não mais que cinza
Não mais que Cânticos de pedra
Dissolvidos em espuma branca…

E se me quiser ver, mais do que sentir
Ser-me-ei Sol de Outono,
Essa luz quente com folhas douradas;
Talvez um cliché, talvez viver.

terça-feira, setembro 28, 2010

Mão Fechada

Hoje o céu caiu com o grito das aves
Estendido no parapeito de uma janela fechada.

Lembrei-me de o procurar no ar que respiro
Depois lembrei-me que não o tinha.

Olhei-o caído, olhei-o cheio de desejo
Com uma mão cheia de pó a perder-se como o tempo
Como se perdem os Homens e seus Deuses…

Para no fim morder as palavras no silêncio
E deixá-las morrer com ele…

sexta-feira, setembro 24, 2010




Indecifrável o gesto dessa chuva
A perder-se nas mãos
Cobertas do pó do mundo,
De todos os seus medos;
A fome desse cheiro doce da terra!

quarta-feira, setembro 22, 2010


Sinais (num mero acaso)

Vive-se num mundo em que toda a gente se conhece, desconhecendo-se...
São como sombras na magnificência de não se tocarem, são apenas o tilintar das línguas de prata. Dizem tudo sem nada pronunciar. Fazem tudo para desfazer com acerbado prazer. São seus deuses em nome de um deus maior.

Hoje não sou mais humano por pretender ser a insanidade de outros olhos, por me apagar nessas sombras com que fantasio na insensata certeza de serem ingénuas. Contudo, sou humano quando a tudo o que quis ser semeei na terra com mãos de criança. E se me digo não ser, como seu igual, sou-me à ambiguidade do pensamento que se diz ser livre, sempre condicionado pelas raízes de uma língua de gente pequena. Quem me dera ser grande, “ser maior do que os homens”, ser do vento uma tempestade no fim do mundo, o sopro ameno ao crepúsculo veraneio. Quem me dera ser tanto que não gente, feito desta carne como que preparada para um “consumo masturbatório, com a certeza de ter um prazo, um rótulo, corantes e conservantes e, se lhe dado empenho publicitário, uma embalagem agradável.

Será liberdade ter um corpo que nos defina como “seres”? Será liberdade o signo das ideias, aquando a necessidade de lhes dar forma existencial?

Um à parte
Ser livre não é dizer o que se pensa ou fazer o que se quer, não quando nos assumimos racionais…

sábado, agosto 07, 2010



Túneis de sombra verde e cortinas douradas numa estrada seca; serpentes de luz hipnotizam, e no olhar, humilde palha ou cereais. Era o momento transitivo da viagem. Talvez pelo ronronar do vento numa nesga de vidro, segredos imperceptíveis, por desleixo ou exilo. Quem sabe a paisagem a contagiar os sentidos, as quintas de uma infância distante e todas as cantigas guardadas na memória ingénua. Os gestos são de cumplicidade e rebeldia a rasgar um sorriso, uma gargalhada, aquela música na rádio.
Por momentos era esta a viagem, talvez quando a cabeça apoiada no banco e as árvores e as nuvens a fugir, deixa-se de ouvir, apenas o respirar do tempo.

quarta-feira, julho 21, 2010

Escuto-me
Com pequenos goles de sangue
E no céu
Asas de um anjo
Curvam-se no pôr-do-sol

O medo de se extinguir
Adormece com a Lua
A crescer
Sente-se pequeno
Confunde-se nos limites do olhar

Os sinos tocam
Rasgam -me
Em tons púrpura
Resta adormecer para a mortalidade
Do último canto do dia

domingo, julho 18, 2010


Incógnita

Nas ruas desabitadas
Inundadas de almas
Nuas como o vento

Vi pegadas de ninguém
No pôr-do-sol
Prateado na rocha antiga
Dourado na pele salgada
Lágrimas num mar azul

Seria cheiro de pólvora
Desse fogo vadio?
Seria medo camuflado
De mendigo do mundo?

Acompanhei-a num suspiro
E desejei-a sem outro homem
Que a pisasse como sua

terça-feira, julho 06, 2010


Troca de Palavras


Penso nas palavras que poderei libertar, mesmo que me saiba melhor o silêncio, um suspiro vicioso e o toque frutado de um copo meio vazio.

Serei um copo meio vazio à espera de ser meio cheio?

Desde que provei a liberdade, jamais me permiti a ter mais fome do que aquela que os olhos podem comer, porque o corpo é fraco e de débil auto-suficiência. Melhor que um copo meio cheio era não ter copo e ser o seu conteúdo nos lábios etéreos de uma flor a desabrochar o vermelho sangue nas lágrimas prateadas de um unicórnio que sonhava ter asas para alcançar as estrelas de toda a sua vida contadas.
Dou mais um gole, acompanhado de um cigarro para que mantenha a consciência de acolher a noite tardia e cumprimentar o gato que se aproxima com vozes de luar. Ainda assim, continuo a ser metade de tudo o que sonho ser, mais um entre tantos.
De copo vazio, abandono o terraço e as conversas com o gato, para me deixar perder nas palavras dos outros e em copos cheios.

Hoje troquei-te pelo fascínio da minha cidade. Troquei-te por este olhar profundo que se começa a notar com o marcar do tempo. Hoje troquei-te pelo desespero de me saber ter sem outras mãos a segurar os sentidos, e foi necessário escutar o vento quente para saber o seu valor, sufocado pela racionalização do mundo.
Hoje troquei-te pelo prazer de me enfrentar; ou terás sido quem me trocou pelo desprendimento humano, ou pela simples vontade de te ser indiferente?

Troquei as quatro paredes seguras porque não quero ser fiel aos meus medos. Troquei-te pelo olhar sincero de uma cidade com mais para sentir do que todas as palavras que saberei escrever.
Troquei as fobias só para não me sentir trocado, para me ser como uma criança que não conhece a dor de pensar, que é tão ingénua como as histórias que desenha numa folha de papel. Rasgar construções frásicas, ainda que desprovidas de interesse, poderá ser como desenhar nesse mesmo alheamento?
Gostava de saber dizer como me parece medieval a cidade com o tocar dos sinos, como se transforma com o sol bocejante.
Andorinhas rasgam os céus. Quase poderia dizer que, se as arrastasse como arrasto a tinta nas páginas virgens, seriam imaginação e histórias sobre o castelo para quem dançam. Poderiam contar as histórias das pessoas desta cidade, e de outras mais quentes na sua partida, não tão belas certamente. Em que outro mundo podê-las-ia ouvir com tal liberdade? Que outras muralhas contemplariam o fascínio de um labirinto de sombras esbatidas em tons de azul, rosa e púrpura? Poderia esquecer tudo isto e as palavras que apenas revelam uma parte de um todo inexplicável?

Troquei-te pelo que os olhos absorvem, pelo rosar do céu, pelos labirintos de sombras, pelo verde nas muralhas de um castelo abandonado na história.

Troquei-te pelo cheiro quente do vento a afagar-me os cabelos, pelo aconchego de me deixar absorver numa réstia de dia no horizonte que une as margens da razão à emoção.

Troquei-te pelos sinos a roçar na amargura dos lábios humedecidos, pelas fábulas de andorinhas contadoras de histórias sobre homens.

Troquei-te pela liberdade de fingir que não foste tu quem me trocou por banalidades, porque nada é mais importante do que o céu a tingir-se de magia, o vento a sussurrar-me ao ouvido cantigas de viajantes do tempo, um castelo guardado por muralhas verdes e andorinhas contadoras de histórias, um rio que uma ponte pacifica com a união de conceitos diferentes que só a alma descodifica, uma cidade que acolhe todos os sonhos daqueles que ainda se lembram de como se sonha.

No fim, pergunto-me: terei realmente desejado outra coisa?

quarta-feira, junho 30, 2010


Palavrear

Palavras na terra quente
São de quem sente
Fantasmas sem forma
Talvez gente

Nas estrelas, a sombra
Olhos de lua nova
A ferir com prazer
Essa cede de beber em sujas mãos

Palavras em terra de ninguém
Não se sabe de onde
Vieram do rio
Naufragadas talvez

Esperavam morrer
Sonhavam vencer
Cresceram no mármore azul
Para velar a lua

Não serão palavras
Pedaços de vida e de morte
Palavreados
De todos os que as perderam

segunda-feira, junho 21, 2010


Pressenti a chegada de uma qualquer melodia perdida sobre o rio. Soube-me a fantasia indiscreta, a sonhos e a viagens medievais perdidas nesta mesma cidade, nas sombras de outro tempo. Será imaginação provocada pelo transbordar de desejos, distraídos pelo sensabor rotineiro? Ou uma justificada vontade de estar orgulhosamente senil?
Aguardo que o fogo se extinga num altar de cinzas sem deuses que me guardem. Hoje quase que alcancei o que não tenho dedos para tocar, e o pó que ontem abracei faz-me esquecer que fui feiticeiro numa cidade de ilusionistas onde a música se deixa morrer em constelações efémeras. Quis segui-la, debruçando-me sobre as telhas ainda quentes, mas a cobardia fez-me ser apenas um observador de limitadas palavras. Um observador com os olhos cheios e de mãos vazias; com o coração a transbordar de memórias sensoriais, sendo que, na sua maioria, de duvidosa existência. Se os fechar, conseguirei ver? Conseguirei estender as mãos num infinito movimento e alcançar a certeza dos meus gestos? Conseguirei não me perder?
Ainda e oiço, distante, trazida pelo vento que me lambe a face com sabor a lua e a mar. Será real ou apenas uma ilusão de estado de espírito, ou uma necessidade? Será de relevante importância a sua origem?

O fogo extingue-se e num momento desprovido de luz, de sombras, de senso comum, sinto segurar-me a mão sem medo, sem preconceitos, sem palavras, sem promessas, leva-me a consciência, o pudor, as memórias, e deixa para traz o corpo adormecido, a ingenuidade de sonhar contos de fadas. Esse nada que me resta guardá-lo-ei como se guardam as estrelas, com desprendimento.

sábado, junho 12, 2010


Uma Viagem


Vejo a ondulação das folhas nas árvores, vejo-as dentro de mim mesmo, o pulsar do coração ansioso numa espécie de solidão propositada. O céu tingiu-se de cinza, ontem era azul. Aos poucos deixam as folhas de ondular, aos poucos congela o mundo num silêncio sufocado. O tempo parou. Só não morreram as memórias. Não sei esquecer. Talvez, aos poucos.
Vim para me perder de mim, fugir da minha consciência maliciosa, reaprender a respirar, e ainda assim tentei nos outros obter a minha própria felicidade. Má ideia de se ter entre humanos. Deveria ter aceite a proposta do gato boémio e trazer a sua filosofia de jovial sensualidade. Mas as escolhas acertadas são sempre as piores de prever.
Realmente perdi-me. O ar que respirei era doce, um aroma quente e suave. Até o olhar nervoso se perdeu em múltiplas manchas de cor que salpicavam telas longínquas, com casinhas e montes e um rio e um lago e um moinho e todo um leque de pormenores a serem explorados. Por momentos era uma criança pequena a deixar-se embalar pelos cantos de tudo o que me rodeava, nas mais perplexas sinfonias. Ao fim de dois anos, deixei que o sol me beijasse a pele sem qualquer tipo de preconceito, arrefecendo-o em artificiais mergulhos lentos enxutos em palavras e cigarros estendidos no corpo adormecido, na mente aconchegada. Desta vez os sentidos despertaram no seu mais primitivo desejo, liberdade.

Passou uma semana e ainda não me habituei a mim mesmo. Tenho tempo, mas ninguém disponível na minha vontade. Escuto um fim de semana de festas à moda de Lisboa, uma cidade que cedo aprendi a amar, respondendo-lhe com desprezo desmerecido.
O rio no horizonte, observá-lo é uma tentação a fazer das suas vagas prateadas um manto. Vejo que também o contempla, mantendo-me silencioso. Confesso que a vontade de ir ter com ele, perguntar-lhe porque aqui se procura, que sonos alcança em cada gaivota que segue de olhar escondido, por quem espera, é de fazer hesitar. Mas as palavras que procuraria ter coragem para libertar morrem antes de chegarem aos lábios, mesmo antes de sentir necessidade de os morder. E ele parte como as ondas, na sua indiferente rebentação.
Um barco aproxima-se vagarosamente. Poderia metamorfosear-se numa ancestral caravela, oferecendo-me passagem para um novo mundo? Teria eu coragem de embarcar e partir, sem pertences, levar-me apenas? Será que não me deixaria ficar a vê-la partir e afundar-se no fim do mundo? Será isso viver?
Termino com três opções para esta noite, e nenhuma me parece tentar o suficiente…tal como o Mundo…tal como os seus humanos…

segunda-feira, maio 31, 2010



O Primeiro Mergulho

Dava de si o corpo mergulhado na sua agonia de existir, pobre gato boémio. Ver-se respirar em palavras licorosas de todos os dias, e agora escasseia o ar sob os pés inventados pela pobreza de um deus arrastado. A culpa não é da cidade que o abraça, não é a vida que o mata, é qualquer coisa que não se sente se não na sua insensata observação das sombras do mundo.
Hoje vi-o sentado num muro alto e branco, cheio de sol, de olhar cansado e pachorrento. Não me quis aproximar, ardia nessa luz de que sempre se escondera. Mais tarde circulava novamente, tentando-se ao destino de outras viagens. E depois desapareceu…
Este sal deu-me o corpo branco na rebentação das ondas, e o vento a abraçar a pele com um cheiro doce. Tão mais fácil conhecer a ingenuidade da vida numa gargalhada perdida num oceano, de mais ninguém. Como se pode esquecer o inesquecível? Como se pode adormecer conscientemente? Este paladar com um toque despreocupado na ponta dos dedos, enquanto se partilham histórias sobre o tempo. Correr foi diferente, foi ser livre. Ser-me livre…
Encontrei as suas palavras guardadas numa garrafa sem rótulo. Vou deixar a janela aberta para quando quiser voltar.

terça-feira, maio 11, 2010



Chagas

O Homem é carne feita em fantasia
Num molde de imaginação fértil
Velho de seu uso para uma morte estéril;
Não lhe chega a saber o que é ser criança…

Não lhe chega!

Ensurdeceu-se numa multidão
Um povo a dar-se de comer aos pombos

Nem os oiço chiar
São poucos os que fervem com gosto
São uns pudicos com ideias,
São uns idiotas quaisquer,
São o que são e o que não quiseram ser.

Mas será que chega?

segunda-feira, abril 05, 2010



Saber saber

Saber encontrar-se num pormenor
Essa insensatez mesquinha
Sorria para as tempestades urbanas
Sem o pudor dos mendigos;

Saber ser – exige-se orgulho!
Esse complexo de pequena vontade
Fazia de ti barqueiro no mar azul
Que lentamente te abraçava.

Saber sentir-se na liberdade do vento
Esse tempo que escasseia nas palavras
Erguidas como velas sobre os astros
De um mundo inteiramente seu;

Saber ver – o olhar de um anjo!
Essa perversidade ingénua
Em que se desconhece mais que do mundo
O sonho de uma criança…

Restos de fogo, o fumo de ontem;
No corpo a guerra, na alma a guerra!
Resta saber o que sabem os Homens
De Si, dos Outros e do Mundo?

domingo, abril 04, 2010



Lembrar hoje, construir amanhã…?

O império é na sua mente um comum abrigo inflacionado, tudo o resto são pequenos blocos coloridos pela criatividade de cada um. Não vive de sonhos porque sempre que os abraça são de areia a esvair-se nas suas mãos vazias. Disse-mo enquanto murmurava as gordas de um jornal datado, sem nunca me olhar nos olhos. Ambos sabíamos que era melhor assim, apenas palavras soltas para não nos embrenharmos na melancolia das nossas leituras incompletas.

Lembras-te de quando éramos pequenos? Tu construías os mundos que eu desvendava numa caixa de cartão. Mais tarde cantavas numa folha de papel as palavras que embebia em tinta-da-china. Lembras-te?

Agora procuramo-nos na janela embaciada da madrugada e nunca sabemos se nos veremos nela, ou se apenas o toque húmido e frio da sóbria existência. Já não se sonha ingenuamente. Amanhã dormiremos de janela aberta para deixar entrar um pouco de lua…

sábado, abril 03, 2010



Analgésicos

Ontem acordei na paisagem dos teus olhos
Essa fantasia anestesiante.

Dá-me morfina!
Rouba-me as palavras para que não lamente
A expressão ausente;
Corta-me a língua para que não prove o sal
Desses mares em que navegas.

Dá-me morfina!
Deixa-me adormecer no fogo da pólvora
Ensurdecedora tempestade;
Queima-me a pele
Não quero sentir a posse do corpo…

Desejam-se insensatas virtudes
A definição de uma perpétua nudez marmórea…

terça-feira, março 23, 2010


Num mero acaso

Será que sentem esses mendigos
Em que se distanciam esculturas de vidro
Os licores dos sóbrios esquecidos?
Será gente perdida – será gente?

Fingem não saber o que se fez ver
Desse peregrino orgulho – qual marcha triunfante,
Vontades sem voz nas veias a ferver;
Monstruosidade, sua majestade possante.

Porque pequeno vês se é grande o olho
Grande como Sol, como a tua própria sombra?
Talvez não mais que um sonho
Em que a Deus confessadas frustrações
De leigos – essa prostituição latente.

As ruas cheiram a mofo
São como trincheiras e livros de história;
Mais um copo de vinho ao velho louco
Mais um brinde à sua glória!

Cansas-me de como ver as unhas crescer
Cheias de terra, cheias de medo;
Cansas-me! Inútil sobriedade febril!

…E toda a tua questionável sensatez
Fez-me não ser de ti mais que um acaso….

sábado, março 13, 2010


Uma pequena piada

É engraçado o facto de nunca nos perguntarem o que queremos. De forma cordial e cortês, muitas vezes um “o que deseja?” ou “em que lhe poderei ser útil?”, é um quase que se baseia na satisfação de um desejo fútil, orgânico, algo do género (não me ocorrem ideias melhores). Mesmo que a pergunta seja “o que queres?” é sempre colocada no limiar da vontade, servida à simplicidade de uma escolha que, provavelmente, nunca chega a ser sincera para nenhum dos intervenientes. Gostava, mesmo muito, que me perguntassem o que quero, uma pergunta vinda das profundezas humanas, onde tantos morreram nessa tentativa inexequível de a alcançar, que faria os olhos brilharem à semelhança dos de uma criança feliz no dia de Natal (sublinho o facto de criança feliz pois nem todas o são, ainda que com a menção natalícia – palavra feia). Fracos. Mas como “querer é poder”, provavelmente é esse o motivo para que não se permita tal luxo, essa predisposição de satisfazer a vontade do outro, ainda que a justificação advenha do facto de que, o poder, é uma coisa ruim quando nas mãos erradas. Para mim não há mãos certas ou erradas, há simplesmente mãos. E o lado humano desse membro, esse sim, é aterrorizador.

sábado, fevereiro 27, 2010


Um Naufrago, talvez…

Sou mais que matéria orgânica
Essa fonte consumida pelo tempo
E o resto ferve inconsciente
Combustão de actos, ideologias, emoções
Onde a carne guarda o olhar

As minhas palavras nos teus gestos
Os teus gestos nas minhas palavras
Fermenta o veneno de outros dias
Perdendo-se o corpo nas tuas mãos

Esse fumo que se dissipa na neblina nocturna
Fúnebre olhar o nosso
Tão cerrado que não se vê
De mim – talvez nunca tenhas existido
Talvez se tenha perdido, talvez…

Não sou o corpo, não sou a terra
De que te valeram as conquistas,
Todo esse sangue perdido por capricho teu?
Ainda nos conseguiremos ouvir?

Foram palavras naufragadas
Um esgar de sorte
O respirar desse mar silencioso
De tão profundas distâncias
Talvez o infinito, se não se perderem.

terça-feira, fevereiro 16, 2010



Deixem-me dormir...


Procuro exorcizar as palavras e o silêncio das emoções, ser a liberdade dos outros. Mas tudo o que alcanço resume-se à vertigem no limiar da sua falsa concretização.

Saudade, essa expressão melancólica, esse tédio de respirar. Não me contenta a espera, a sensualidade subtil adormecida. Anseia o corpo a liberdade de ser o vento numa falésia azul, perder-se a noção de Newton e o veneno da sua maçã. Caí na tentação de a morder e apenas recordo o doce ardor a escorrer-me pelos lábios ainda quentes; tudo o resto dissipou-se sem a mais pequena justificação, porque essas coisas não se justificam, sentem-se apenas, fervem por dentro e da espuma surge a saudade.

Como posso ter saudade do que nunca tive? Será verdadeiramente saudade a noção de ausência concreta do que se idealiza e sonha intimamente, mesmo sem nunca ter provado o antídoto do nosso próprio veneno? Digo-o porque apenas brinquei de alquimista, de inventor do eterno capricho dos meus sonhos infantis.

E porquê sonhar quando o sonho não nos basta? Não me contenta ou satisfaz a réstia de luz de um profundo sono, mas ainda assim deixem-me dormir.

domingo, janeiro 24, 2010


Presas e Predadores suicidas

Faço-me perder na Cidade entre malabarismos de fogo e sombras velozes. São tão poucos os sinais, facilmente extintos nas almas de gente igualmente fácil. Não oferecidas, mas levianas no modo de pensar e agir, de vista turva sobre o trânsito das tarefas diárias. Também serei assim, hoje ou amanhã?
O meu passo apressado é a fuga de instinto selvagem a que me dou de modo automatizado. A lebre assustada que cheira os caminhos alheios e escuta o longínquo, só para não correr o risco de ser surpreendida por um qualquer gesto. Que predador terei guardado inconsciente, no sono reprimido e na vertigem exaltado?
E porque apenas me liberto em palavras silenciosas ao invés de confiar na sua expressão sonora quando empregue num simples verbo ou acção. Não sou bom actor, não tenho a arte de reciclar emoções em sensações causa-efeito. Se ganharem voz, moldam-se ao pensamento imediato. A sinceridade mata. E entre tantas coisas simplesmente humanas, sabe-me o risco da insónia ao mais profundo suspiro.
Pudesse eu ao menos ser a estável metamorfose fria a erguer-se da fantasia. Mas quem seria eu? Talvez outro humano na sua miserável insensibilidade afortunada. Será real essa existência ou apenas uma camuflada expressão de vulnerabilidade discreta? No fundo, a força, não os impede de morrer nos escombros do seu pensamento, é a utópica segurança desses audazes peregrinos, desses suicidas inconscientes.

domingo, janeiro 17, 2010

Eu e as palavras

Como poderei ter esquecido as palavras, mesmo antes de verdadeiramente as conhecer, se delas faço parte como um todo, como o simples ar que respiro? Talvez desconheça o meu próprio sentido e tenha, assim, renunciado à interpretação obscura dos pensamentos vertidos de uma alma inquieta, para que não me reveja na sua essência, nesse auto-flagelo. Na tentativa frustrada de projectar nos outros essa imagem pálida e baça, reconheço o excessivo drama enaltecido por emoções e sentidos que só as palavras descortinam em jeito poético.

É a poesia em mim um fervilhar de coisa nenhuma, o magma nas artérias sob uma crosta de pó e areia, de questionável valor, uma exposição amontoada de razões desprovidas de razão, de loucura (in)consciente, de uma vontade de vomitar tormentos insignificantes, um quase sufoco no próprio líquido amniótico. Num mero acaso, o rasgar da placenta, das vísceras e da carne. Libertar-me, num mero acaso.

Sou o meu próprio inimigo. E o Mundo é a minha pequena masmorra.