quarta-feira, maio 21, 2008


Crono

Os dias passavam como areia entre os dedos. Era a percepção que tinha sempre que consultava a lista das tarefas agendadas diariamente, apertadas nas pequenas linhas marcadas entre as horas. O tempo parecia nunca chegar. Via-se preso a um relógio viciado, que controlava frequentemente, tão louco e mecanizado quanto ele, viajantes das rotinas impostas pela sociedade e por si próprio, pelas suas escolhas.
Albergava-o uma cidade sombria e irrequieta, com seus gigantes e parasitas, num ruído constante e fumos negros e pensamentos obscuros ou emoções descontroladas, um cocktail que cria e assume a geração do victan, ou semelhantes, fervendo a droga legal no corpo e na mente, uma oferta ao estatuto distinto dos que se escondem nos vultos de uma noite pouco sóbria.
Sentia-se cansado e enjoado de tanto movimento e das corridas constantes de rua em rua, sempre nos mesmos caminhos. Bastava-lhe seguir as pegadas marcadas dos outros dias. Tomava-se como num parque de diversões macabras, em carrosséis contínuos de movimento meramente circular. Depois eram as caras, sempre iguais, máscaras que deambulavam entre si, de expressão medonha e olhar tenebroso, rindo de si e da sua condição, vazias, sem alma.
Restavam-lhe as noites de lua, em que esta se erguia no seu estado pleno por trás da serra, ostentando haver mundo para lá dos limites do conhecido. O primeiro impacto era fantasmagórico, pois as nuvens ocultavam parte do seu brilho. Não tinha medo. Era um ser nocturno, cujas ideias fluíam com os astros infinitos. Queria dormir, tinha sono, mas não se podia entregar às necessidades do corpo, sem antes satisfazer as vontades da mente. Eram escolhas, e as suas residiam na vontade de ser maior.

segunda-feira, maio 19, 2008

CLAMP In Wonderland 2 - High Quality

A cute yet short music video featuring characters from CLAMP from 1995-2006. This time, the two Mokonas are going to have a journey, meeting new friends and trouble! On the way, one of the Mokonas will be meeting some old companions.

This video features more than 50 characters. Could you name them all?

Song: Action!
Artist: Maaya Sakamoto

[Em breve farei uma pequena biografia das CLAMP, para mostrar o trabalho deste grupo de desenhadoras de mangás]

quinta-feira, maio 15, 2008


Insónias Agendadas

Estou cansado. A tinta que mancha as paginas da minha agenda sufoca-me. São dias que se preenchem em poucos minutos, roubando-me às poucas horas de sono o conforto da cama.
A mente adormece e a carne vacila de desejo e vontades enfraquecidas pela sonolência do espírito. Enoja-me esta gosma social que se prende à consciência e cria bolor. É o vómito embriagado que fervilha no pavimento de mármore, limpo por uma esfregona suja e velha como a senhora gorda que a segura e pragueja. E eu que só queria um lençol de linho, sem manchas de sangue industrializado.
Tenho fome, fome de comida, de sexo e cama. É o resultado de viver numa cidade grande e de ruas pequenas e sujas. Lá no campo tinha as ovelhas, e uma boa ovelha mata as três fomes, já dizia o sr. Zé dos queijos. Ao menos cá não me chateiam as moscas, as melgas ocupam-se disso.

sexta-feira, maio 09, 2008


I - Gosto de...
Gosto destes dias tranquilos em que desperto na cidade de Lisboa e a vejo acordar com olhos de sono. Na sombra ainda vejo os restos de uma noite de pronuncio do que será mais tarde. O Sol ilumina as ruas vazias ou ainda pouco povoadas, enquanto os jornais são arrumados nos quiosques, fermentando os escândalos e as tragédias do dia. E quem sou eu, que me faço errar pela calçada, numa passa para saciar o estúpido vicio a que me condeno? Ninguém. Restrinjo-me à minha presença nula e aos pensamentos escondidos, rebuscando memórias com as quais tento aprender. Olho em volta e deixo que o espaço me absorva na condição de ser humano.
Mais homens e mulheres e crianças fazem sentir a sua presença de gratuito em punho, com hábitos alinhados ao papel social. Alguns alheiam-se com música que mais ninguém ouve, ou apenas o ruído. E eu que me sinto turista, hoje que os vejo de fora, admiro e observo estas formigas. Também eu sou uma delas, mas por enquanto ainda estou distanciado pela pouca necessidade de correr, deliciando-me com o canto profundo da cigarra.

quarta-feira, maio 07, 2008


Nas brumas do Tejo

Trago-me escondido nas brumas do Tejo
Assombrando nas luzes de uma cidade
Que dorme esquecida na saudade
Do que um dia foi, num momento distante.

Sobre mim – as estrelas que nos guiaram
Por tantos mares perdidos na história
E que agora se apagam na memória
Do que um dia foi e não voltará a ser.

Vejo no céu a vergonha de Vénus
Pela miséria de um povo mirrante,
Enquanto Baco ri triunfante
Das amarguras de um vinho mal bebido.

quinta-feira, maio 01, 2008



Aquele Mundo

Hoje sentia-se revoltado. Não sabia porque é que existiam elementos na sociedade em que se inseria com comportamentos que ainda o chocavam, apesar de essa estupefacção durar por apenas breves momentos. Apesar de não poder afirmar que já lhe tinham passado pelo corpo e mente vários anos de experiência, porque ainda era jovem e verde, o conhecimento básico tornava determinadas situações previsíveis, que não mudavam com a frequência necessária para uma evolução aceitável. Um país de costumes e (pré)conceitos, onde a crescente alfabetização não tinha sido suficiente para ensinar as pessoas a pensar, a agirem como animais racionais que dizem ser. E tudo isto fazia-o sentir-se numa aldeia de macacos (peço desculpa aos macacos, pois muitos são dotados de alguma inteligência, visto que, alguns, quando ensinados com empenho e dedicação, até a separar o lixo aprendem): cheira-se o cu do outro, organização em grupos para melhor ataque ou defesa, funciona-se pela recompensa, cata-se os suculentos piolhos alheios, vive-se segundo a lei do mais forte.
O dia havia sido longo, embebido em cansaço, fome e um pouco de stress para saciar a ansiedade constante. Tudo o resto, assim pensava, seriam as necessidades orgânicas, um pouco de estudo e lazer até o sono chegar. Já na paragem do seu último transporte, os seus olhos caíram sobre um homem, de raça negra, que se encontrava estendido no chão, de barriga para cima e olhos fechados. A paragem – pelo menos oito pessoas, imóveis, que olhavam para a estrada ou consultavam o relógio. “Alguém deve ter chamado uma ambulância”, pensou. Silêncio. Um indivíduo aproxima-se do corpo imóvel, verifica se tem pulsação, afastando-se segundos depois para fumar o seu cachimbo tranquilamente. Foi nesse instante que se apercebeu da insensibilidade dos que o rodeavam. O homem estava ali, aos olhos de todos, mas ignorado na sua condição. Não estava morto, e só assim se atrai a atenção dos abutres. Ligou de imediato para a linha de emergência. Parece que mais alguém tinha feito uma chamada para lá. Via-os chegar agora, os outros, que não sendo cinzentos, tinham feito algo para ajudar a vítima. De resto, troca de palavras num discurso de ocasião, criando uma atmosfera pesada entre os outros, aqueles que ignoraram a situação, e que agora sentiam o desconforto de não conseguir desviar a atenção.
A insensibilidade e a indiferença pelos outros sempre foi um comportamento corrente na nossa sociedade, exceptuando quando se tratam de mexericos ou tragédias. Neste caso em particular, aliado à questão racial, também a ideia preestabelecida de que o indivíduo em questão estaria alcoolizado. Mas ainda que fosse o caso, não é admissível que cheguemos, “cheire-mos” o corpo, e continuemos o nosso percurso como se nada fosse. Esta tendência também é muito comum quando se tratam de casos de violência doméstica, em que os vizinhos ouvem todos os dias os gritos, o barulho de uma discussão e de uma mulher a ser agredida (ou criança, ou homem, ou pessoa idosa), e no entanto não agem, não chamam a polícia, não vão tentar socorrer a vítima. Aparecem depois nas câmaras televisivas, após o silêncio eterno, prestando declarações conhecedoras da agressão constante. E depois há sempre aquela desculpa que evoca o ditado popular “entre marido e mulher não se mete a colher”, ou aqueles que ainda têm a ousadia de afirmar que “se levava era porque, se calhar, merecia”.
Este era o seu mundo, a realidade embrutecida pela pouca capacidade humanística da sociedade. O mundo das telenovelas, das personalidades que expõem as suas vidas em capas de revistas, que irão depois entreter o povinho sedento pela vidinha daqueles que idolatram, para assim poderem sonhar ou comentar a tragédia, com uma estranha sensação de felicidade por constatar que há alguém ainda mais miserável. O mundo das vizinhas à janela, atentas aos passos de uma rotina que não a sua. O mundo dos jogadores de futebol que movem multidões que fazem deles deuses, agredindo e sacrificando-se por eles. O mundo de tantos outros sem nome que se perdem em vontades que não as suas ou que não irão concretizar. Sentia uma estranha necessidade de partir, partir para longe. Abandonar este lodo. Contudo, se o fizesse, seria menos um, seria tudo igual. Ainda que a situação pareça desesperante, um pode fazer toda a diferença, num dia, em algum lugar.