quinta-feira, maio 01, 2008



Aquele Mundo

Hoje sentia-se revoltado. Não sabia porque é que existiam elementos na sociedade em que se inseria com comportamentos que ainda o chocavam, apesar de essa estupefacção durar por apenas breves momentos. Apesar de não poder afirmar que já lhe tinham passado pelo corpo e mente vários anos de experiência, porque ainda era jovem e verde, o conhecimento básico tornava determinadas situações previsíveis, que não mudavam com a frequência necessária para uma evolução aceitável. Um país de costumes e (pré)conceitos, onde a crescente alfabetização não tinha sido suficiente para ensinar as pessoas a pensar, a agirem como animais racionais que dizem ser. E tudo isto fazia-o sentir-se numa aldeia de macacos (peço desculpa aos macacos, pois muitos são dotados de alguma inteligência, visto que, alguns, quando ensinados com empenho e dedicação, até a separar o lixo aprendem): cheira-se o cu do outro, organização em grupos para melhor ataque ou defesa, funciona-se pela recompensa, cata-se os suculentos piolhos alheios, vive-se segundo a lei do mais forte.
O dia havia sido longo, embebido em cansaço, fome e um pouco de stress para saciar a ansiedade constante. Tudo o resto, assim pensava, seriam as necessidades orgânicas, um pouco de estudo e lazer até o sono chegar. Já na paragem do seu último transporte, os seus olhos caíram sobre um homem, de raça negra, que se encontrava estendido no chão, de barriga para cima e olhos fechados. A paragem – pelo menos oito pessoas, imóveis, que olhavam para a estrada ou consultavam o relógio. “Alguém deve ter chamado uma ambulância”, pensou. Silêncio. Um indivíduo aproxima-se do corpo imóvel, verifica se tem pulsação, afastando-se segundos depois para fumar o seu cachimbo tranquilamente. Foi nesse instante que se apercebeu da insensibilidade dos que o rodeavam. O homem estava ali, aos olhos de todos, mas ignorado na sua condição. Não estava morto, e só assim se atrai a atenção dos abutres. Ligou de imediato para a linha de emergência. Parece que mais alguém tinha feito uma chamada para lá. Via-os chegar agora, os outros, que não sendo cinzentos, tinham feito algo para ajudar a vítima. De resto, troca de palavras num discurso de ocasião, criando uma atmosfera pesada entre os outros, aqueles que ignoraram a situação, e que agora sentiam o desconforto de não conseguir desviar a atenção.
A insensibilidade e a indiferença pelos outros sempre foi um comportamento corrente na nossa sociedade, exceptuando quando se tratam de mexericos ou tragédias. Neste caso em particular, aliado à questão racial, também a ideia preestabelecida de que o indivíduo em questão estaria alcoolizado. Mas ainda que fosse o caso, não é admissível que cheguemos, “cheire-mos” o corpo, e continuemos o nosso percurso como se nada fosse. Esta tendência também é muito comum quando se tratam de casos de violência doméstica, em que os vizinhos ouvem todos os dias os gritos, o barulho de uma discussão e de uma mulher a ser agredida (ou criança, ou homem, ou pessoa idosa), e no entanto não agem, não chamam a polícia, não vão tentar socorrer a vítima. Aparecem depois nas câmaras televisivas, após o silêncio eterno, prestando declarações conhecedoras da agressão constante. E depois há sempre aquela desculpa que evoca o ditado popular “entre marido e mulher não se mete a colher”, ou aqueles que ainda têm a ousadia de afirmar que “se levava era porque, se calhar, merecia”.
Este era o seu mundo, a realidade embrutecida pela pouca capacidade humanística da sociedade. O mundo das telenovelas, das personalidades que expõem as suas vidas em capas de revistas, que irão depois entreter o povinho sedento pela vidinha daqueles que idolatram, para assim poderem sonhar ou comentar a tragédia, com uma estranha sensação de felicidade por constatar que há alguém ainda mais miserável. O mundo das vizinhas à janela, atentas aos passos de uma rotina que não a sua. O mundo dos jogadores de futebol que movem multidões que fazem deles deuses, agredindo e sacrificando-se por eles. O mundo de tantos outros sem nome que se perdem em vontades que não as suas ou que não irão concretizar. Sentia uma estranha necessidade de partir, partir para longe. Abandonar este lodo. Contudo, se o fizesse, seria menos um, seria tudo igual. Ainda que a situação pareça desesperante, um pode fazer toda a diferença, num dia, em algum lugar.

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