quinta-feira, janeiro 10, 2008


Paz Campestre

Cheguei. Ao fim de três longas horas de viagem, incómodas e apertadas pelo excesso de bagagem, ao som de rádios locais, alcancei o tão esperado destino. Tudo o resto ficou para trás, aquela ruidosa e monstruosa cidade e a rotina que me prendia com as suas correntes de aço, inquebráveis. Nem acredito que aqui estou, mais uma vez, sentado nesta pedra que já me conhece desde pequeno, aconchegado ao abrigo de uma figueira de quem o tempo já ninguém recorda. Parece que me aguardavam impacientes, pois estão como me recordo delas. Aqui não há buzinas, não há gritos, não há crianças a chorar. Não há correrias nem autocarros para apanhar. Tenho apenas o silêncio vivo da natureza que me envolve e abraça novamente, como sempre abraçou.
Que saudade tinha destas tardes de Agosto, tardes em que o canto da cigarra me faz reviver a nostalgia de outros tempos, tempos em que a minha própria inocência se misturava com a fantasia de que poderia aqui ficar na eternidade do tempo. Este é o meu santuário. Não conheço outro destino se não este, que me apazigua e me oferece momentos de reflexão, longe da intelectualidade que nos vicia. Nenhum outro me chama assim, sem palavras, apenas com as recordações que trago na memória. Aqui aprende-se com as sensações e com os sentidos que a natureza nos deu. Aprende-se a respirar.
Olho à minha volta. Não vejo ninguém. Apenas casas distantes, envelhecidas. Semeadas por montes e vales, aguardam serenamente por alguém que lhes conte histórias de outros mundos, de outras vidas que não as suas. Sabem que não virá ninguém. Deixaram-se ficar, com os poucos que nelas habitam, esquecidos pelos filhos que partiram, abandonando a terra que os viu nascer e que sempre lhes deu tudo aquilo que na verdade precisam. Mas, os que ficaram, não lamentam a solidão pois, na verdade, não estão sós. Têm muito mais que pessoas, algo que sempre lá esteve e que conhecem melhor que ninguém. Restringem-se a aguardar a morte, confiantes, com um sorriso na face e sem medos, porque morrer é renascer no eterno descanso que sempre aqui tiveram. Deram toda a sua vida para construir sonhos só seus, e o orgulho é infinito. São felizes. Eu, que venho de fora, de um mundo de cores cinzentas, e que penso ter tudo, por vezes não compreendo como podem ser felizes, sem bens materiais. Aí reside a grande diferença. Não é contentarem-se com pouco, mas é terem tudo o que realmente precisam, aliado à paz que o mesmo lhes oferece. Nós, fantasmas da cidade, pensamos que temos tudo, mas, na verdade falta-nos muito. Falta-nos abandonar o materialismo e encontrarmo-nos bem com aquilo que a natureza nos oferece. Nós somos infelizes, mas pensamos o contrário.
O Sol está tão quente que não há ninguém que se atreva a espreitar pelas portas de madeira e ferro já lascadas, ou pelas janelas de vidro fosco. Parece que toda a aldeia adormeceu, num sono profundo, pousando para uma enorme tela, pincelada de traços incertos por uma mão cansada e enrugada, que mistura, sem saber, todas as cores da vida que já passou.
São duas horas da tarde. Ainda me resta muito tempo até à hora de jantar e o almoço foi farto o suficiente para me deixar aconchegado durante as próximas horas. Sorriu para mim mesmo. É estranho. Toda esta calma me é familiar, mas sempre me parecera tão distante nos últimos meses em que me mantive ausente. Talvez seja por me ter deixado consumir pela sombria cidade. Mas agora não importa, posso ser eu novamente. Posso abrir de novo a mente e deixar-me seduzir pelas maravilhas que este espaço, este mundo utópico, me proporciona. Posso escutar os seus ensinamentos. Aprender a ser humano.
Uma pequena brisa aproxima-se, tocando nas flores silvestres que balançam suavemente. O meu olhar prende-se nas suas cores. Rosa, amarelo, branco, dourado, azul, verde. Perco-me em tanta diversidade. Parece que se movem com o esvoaçar ingénuo das borboletas. Sempre que pousam numa rústica flor fazem-na curvar-se, ligeiramente, voltando subir graciosamente. Depois, abrem as suas asas, salpicadas de tons castanhos, negros e brancos, exibindo-as, para as voltar a fechar, suavemente, sem pressas, mantendo a curiosidade de quem, como eu, as observa. Não têm onde ir. E tudo isto me consome e hipnotiza, levando-me a fantasiar um pouco. Por momentos, breves, mas profundos momentos, parecem-me fadas que pairam de flor em flor, procurando a mais bela, nunca tão bela quanto elas. Quase que as vejo sorrir, escondendo-se entre as pétalas, numa valsa lenta. Gostava de ser assim. Ser livre. Ser eternamente deste mundo, um mundo sem tempo ou movimentos furtivos. Não há dor no que vejo. E invejo-as, fazendo-me despertar, por tal sentimento, por equipará-las ao mundo real, ainda que ligeiramente atordoado. Nunca soube de alguma borboleta que chorasse. Limitam-se a viver, a fazer parte desta fantasia floral. Começam por não aparentar qualquer beleza quando nascem, para mais tarde se envolverem nos finos fios, que tecem lentamente, para poderem renascer. Pudesse eu, ainda lagarta, renascer como elas. Assim também eu seria livre.
Fecho os olhos e encosto-me ao enrugado tronco da grande e majestosa árvore. Sinto a fragrância do florescer da eterna paz invadir-me, provocando-me alguma sonolência. Até a respiração acalma e o coração descansa. Todo o meu corpo parece querer levitar. Sem se mover, tenta alcançar as nuvens de algodão que flutuam sobre si. Afinal já não quer ser borboleta, mas sim andorinha, para poder fugir do frio Inverno sempre que este ameaça aproximar-se. Poder viver numa eterna primavera e imortalizar os sonhos.
Volto a abrir os olhos. Continua tudo igual. Seguro num Pom-Pom Campestre e sopro-o para o céu azul. Observando os seus pequenos fragmentos seguirem a suave brisa que os guia, para que possam também renascer, tento aprender algo com eles. Inspiram-me. Tal como ele, também os sonhos, que, por vezes, julgamos terem sido destruídos, devem ser levados pelo tempo, ainda que dispersos em estilhaços, até que encontrem novas forças para renascer. Diferentes, talvez, mas com outra força, com outra vida. Na natureza, na vida, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Sábias palavras de Lavoiser, que agora recordo. É como a lenda da Fénix, que renasce das cinzas.
Decido abandonar este santuário por agora. Tenho saudade de ver o rio. Felizmente é perto e não terei de andar muito. Sigo as pegadas da memória. Conheço bem estes caminhos. Quase que os posso percorrer de olhos fechados seguindo o meu instinto. As silvas, pelas quais vou passando, estão carregadas de amoras, que protegem com os seus espinhos. Atrevo-me a roubar alguns destes frutos proibidos para que os possa degustar enquanto não alcanço o meu desejo. A vida também é como estas silvas. Temos de passar por espinhos, ultrapassá-los evitando que estes nos firam. Por vezes há um ou outro que nos é cravado, mas vale sempre a pena. O resultado é o doce fruto da concretização que, quanto mais difícil for chegar até ele, melhor irá saber. As amoras estão quentes, parecem pequenos corações. Talvez o sejam, corações que a natureza me entrega, para que não me sinta só. Este sim, é o amor genuíno, que não magoa, apenas quando chega a hora de partir. Mas não me vou preocupar com essa triste imagem por agora. Sei que ainda falta. Estou preso na eternidade, enquanto caminhar por estes trilhos escondidos, rodeado de flores e pinhais. A música é o balançar dos ramos, o cantar dos pássaros e das cigarras, os meus passos, a minha respiração e o suave batimento do coração. Esta sim é perfeita. Embala-me, fazendo o corpo esquecer as suas limitações físicas e quase flutuar até ao rio.
Já consigo ver o velho barco que se encontra na margem. Sempre o vi ali, parado, preso com a mesma corda de sempre, velha, mas robusta. Sento-me nele, fazendo-o baloiçar suavemente. Imagino como seria bom poder descer o rio nesta pequena embarcação. O rio parece coberto de cristais reluzentes, que ondulam. Vejo-me descer este rio de prata, vagarosamente, sem remos, sem leme, até onde ele me quiser levar. Não temo o meu destino. Afinal, sei que posso confiar-me, deixar-me ficar, nos seus braços. Uma suave brisa faz-se sentir. Sinto-a aproximar-se, pelo movimento das folhas das árvores que me fitam nas margens. Ao passar por mim, liberta-me de todos os fantasmas que ainda residiam na minha alma. E é como se me nascessem asas de luz, entregando-me a liberdade e a paz que sonhei em noites escuras e frias. Sinto-me mais leve que o próprio ar. Um novo “eu” renasceu. Está na altura de levantar voo. Abandono o velho barco, e sigo o meu instinto. O rio afasta-se devagar. Agora consigo visualizar todo este imenso mundo, o verde puro que se ergue para o azul, tentando tocar-lhe. Inspiro todo este etéreo mundo que se reflecte nos meus olhos. Vejo novas cores criarem-se. O céu tinge-se agora de tons laranja e rosa. Vejo-o esconder-se, descendo para trás das montanhas. Olho à minha volta. Tudo parece adormecer com ele. E, lá ao longe, vejo-me encostado à velha figueira, abraçando-me como quem abraça a vida.
Abro os olhos. Foi apenas um sonho, ou talvez algo mais. Já está a escurecer, mas não importa. Hoje bebi mais um pouco da doutrina deste mundo. Às estrelas, enquanto a Lua não se faz surgir, conto tudo o que aprendi. E elas ouvem-me, como sempre ouviram os meus desabafos. Também o ser humano devia ouvir. Mas não ouve, limita-se a praguejar as suas desgraças, culpando a má sorte, quando, na verdade, ele é o verdadeiro culpado do seu próprio fado. Levanto-me e acaricio a grande árvore. Conhece-me melhor que ninguém. Quase que a oiço respirar e sorrir para mim, ternamente. Despeço-me. Sei que, quando voltar, ela ainda ali estará, à minha espera, como sempre esteve.
Trabalho para a cadeira de Técnicas de Expressão Escrita I
Elaboração de um texto lento (de 4 páginas)

1 comentário:

macaw disse...

Olá!
foste nomeado pela arara!
reclama o teu prémio!LOL

parabéns pelo blog!