quarta-feira, outubro 01, 2008



A Velha Verdade

Reconheci a verdade num dia em que me perguntaram se estava de luto. Agora já não sei dormir.

Vesti-me de negro, um manto de noite.

Pausa para um cigarro molengão e aquela música que já não estranho. Mas o tempo não parou. Nunca pára, apesar da sua bipolaridade.

Penso que todos os olhos de todas as ruas me seguiam, ainda que num paço sempre rápido. Ignoro. Talvez não ignore, estou a mentir. Intriga-me terem tempo para seguir viagens alheias. Pobres que não sabem ler, e os que sabem não querem sujar as mãos de negro e cinza.

Agora preferem pólvora e sangue.

Já não estou habituado a sair de casa sem música constante. Não suporto o reboliço da cidade em hora de ponta, as conversas provincianas nas paragens e nos transportes públicos, as abordagens inoportunas, tudo.

A música oferece-me a exclusividade própria e cansa-me menos.

As pessoas cansam e são mesquinhas, odiosas numa elevada percentagem. Consumidas pelo tempo, odeiam a vida que construíram e praguejam a má sorte e o sucesso dos outros, que nunca lhes parece genuíno. Anseiam a tragédia e o crime passional a fermentar na calçada.

Desta vez, a verdade4 vestiu-se de homem velho, enrugado, com vestes debutadas e um boné que lhe escondia o olhar. Parou nas horas mortas e observou-me a alma:

Temos futuro doutor?

(Sorri) Não.

(Aproxima-se mais um pouco) E advogado? Tem ar de quem estuda direito.

(Estou cansado) Também não. Jornalismo”

(Ficámos frente a frente) Vai pela vocação. É jovem, mas não se deixe perder em sonhos fantásticos.

Depois ensinou-me o que sabia sobre fazer jornais e que, na verdade, já não restavam muitos jornalistas, apenas escritores furiosos, operários, ou operadores de escrita, ou uma elevada percentagem de gente frustrada no desemprego.

Sorriu para mim, escondeu os olhos profundos com a pala do boné e afastou-se, acenando de costas voltadas. Desejou-me boa sorte.

Desapareceu…

Há quem possa afirmar que era um pobre velho senil, ou que foi apenas um delírio meu. Não me importa a verdade dos outros. Que seja eu o louco se for mais fácil para alguns. Não foi sempre a loucura uma desculpa para o que é diferente?

Não quero ser a sombra dos outros… Quero apenas voltar a adormecer…

1 comentário:

Blood Tears disse...

A verdade apresenta-se-nos consoante o que nos vai na alma.... Realidade ou ilusão, as palavras rodopiam e ganham forma, modeladas pelas ideias que nos preenchem....

Blood Kisses