quinta-feira, agosto 17, 2006


PALAVRAS NOCTURNAS
(1)



É durante a noite solitária que os medos fogem da alma para atormentarem os sonhos. Soltam-se gemidos abafados pela almofada quebrando o silêncio, mas mais ninguém o ouve. E é aí que se ouve o estalar da mobília, trazendo ao momento um gosto mais assustador, alimentando assim a sensação de solidão. Porque me lamento se, na verdade, fui eu que escolhi o meu destino? É este o sinal da cobardia de fazer o tempo mudar... Posso ser um cobarde da vida, sobrevivendo para os outros, mas ainda existo como matéria. Sou a matéria de um sonho de ninguém, perdido nas madrugadas de uma terra que não existe.
A história já mudou. Não sou mais se não aquele que escreveu e escreve palavras que tu nunca compreendeste. As palavras que saíram e ficaram à espera que tu as lesses, mas tu não o fizeste. Dizias que sim e, na verdade, cheguei a ver-te declinado sobre elas, mas isso não basta. Não basta dizer que são belas, ou agradecer pelo facto de lá estarem, é preciso também compreendê-las e isso tu nunca soubeste fazer. Não te culpo por isso, culpo-me a mim por as ter escrito. Agora que o vento já as levou ficaram as folhas em branco, num livro ainda por escrever. Esse será um livro de histórias que nunca te contei porque nunca as quiseste ouvir e eu nunca as quis contar. Para ti não interessa saber de onde vêm as palavras porque já não te fazem falta, nunca fizeram, foi apenas um misto de conveniência e obrigação.
As palavras que agora escrevo têm apenas o sentido que lhes dou, não são para ti. Expresso com as mãos aquilo que os olhos viram e que a alma agora sente. A minha curta existência, como tu tantas vezes me disseste, sente que a criança por ti afirmada já não existe. Onde foi parar a inocência que me roubaste sem te dares conta? Perdi-a e sei que não voltarei a encontrá-la. Também já não a quero, só iria fazer de mim um alguém ainda mais fraco do que já sou. Não vou continuar a divagar em sonhos, já não valem aquilo que queria. Até esses escondeste de mim. Mesmo que afirmes ser mentira, eu sei aquilo que sinto, aquilo que fui e aquilo que agora sou. A culpa não é de ninguém, também não é tua. A culpa é minha pois fui eu que um dia os libertei.
Esta noite vou deixar-me ficar no silêncio, até que a madrugada volte e me faça renascer. Se não voltar deixem-me dormir e viver na fantasia para que ninguém ma roube.

2 comentários:

Liliana Silva disse...

É importante conseguirmos avaliar aquilo que nos acontece ao longo da vida.

Não me canso de dizer, e tu sabes, que são todas essas mágoas que nos fazem crescer e ser melhor cada dia que passa. Porque quem nos magoa é mais do que uma simples pessoa, é alguém que representa muito para nós, alguém em quem confiamos os nossos segredos, as nossas dúvidas. Mas por vezes, não há a compreensão, porque é mais fácil as pessoas se afastarem dos problemas do que permanecerem presentes para tentar ajudar a resolvê-los.

O teu texto é de uma simplicidade tocante :) Parabéns, como sempre.

AFSC disse...

Adoro a forma como escreves, parabéns pela clareza das tuas palavras!
Identifiquei-me imenso com muito do que escreves nessas linhas, pois é durante estas noites que o sofrimento, a ansiedade, de tudo o que estou a passar neste momento, me atormenta!
É apenas durante a noite que sózinho consigo chorar!

Parabéns pelo post, excelente ;)