sábado, outubro 21, 2006



Desperdícios

O Francisco foi despedido da empresa onde trabalhava. Não por incumprimento seu, mas apenas porque, lentamente, o negócio foi deixado de funcionar e os empregados foram sendo “aconselhados” a sair e a encontrar outras alternativas. Alguns insistiram em ficar, como o Francisco. Afinal, já trabalhava ali há muitos anos, gostava de ali estar, era bom no que fazia e todos gostavam de si. Até que um dia, um pouco abruptamente como sempre ocorre com as más notícias, a empresa fechou as portas.
O Francisco viu-se na rua, com uma magra compensação pelos seus muitos anos de trabalho. Inicialmente não se preocupou em demasia. Afinal, tinha experiência, formação, excelentes cartas de recomendação. E, sobretudo, era bom no que fazia.
Bateu a várias portas mas, estranhamente, poucas se abriram. “voltaremos a entrar em contacto consigo”, “Neste momento não precisamos de mais pessoal, mas vamos guardar o seu currículo”, “Na verdade tem qualificações a mais para o que pretendemos”, “Não encaixa exactamente no perfil de empregado que estamos a contratar”. Passaram dias, semanas, meses. Passou um ano e depois mais meio. O Francisco desesperava e aos poucos esmorecia. Não, não passava fome nem vivia debaixo da ponte. Felizmente, não tinha filhos pequenos nem a renda de casa era alta. A mulher ganhava razoavelmente e tinha algum dinheiro guardado. Mas sentia-se diminuir, apagar. E, sobretudo, não percebia o que lhe estava a acontecer.
Alguns amigos diziam que era das cunhas e que tinha era que falar com alguém que o pudesse desenrascar. Outros falavam na recessão, nas taxas de desemprego. Não era ele, asseguravam, não era ele. Ele era qualificado, competente, um excelente profissional.
Tentou de tudo, até concorrer para empregos menos diferenciados. Mas aí olhavam-nos com cinismo e desconfiança e nas suas costas quase podia jurar que ouvia as insinuações: “Mas quem pensa o gajo que é? Está-se mesmo a ver que tem um curso e quer vir para aqui acarretar com pesos... O gajo quer é vir e passados dois meses está a ver se fica como responsável disto... era o ficas, era... ponho-te mas é já a andar!”.
Até que um dia, com uma olhar compadecido, uma das responsáveis pela selecção de uma das inúmeras empresas a que já tinha ido – jovem, tão jovem que mal parecia saída do secundário –, acabou por lhe confessar: “Sabe, não é nada contra si, nem tem nada a ver com o seu currículo. É que o doutor é... desculpe... demasiado velho! E as empresas não querem contratar gente da sua idade, que já tem experiência e normalmente exige melhores salários e mais direitos. Querem gente nova, que faz tudo para começar, mesmo que seja trabalhar 10 horas por dia quase de borla, está a entender?” Entendeu. E parou de procurar. Foi para casa, calçou os chinelos, sentou-se à frente da televisão. Fechou os olhos e imaginou-se num jardim público, a jogar às cartas e a adivinhar o voo das pombas. Adormeceu.
O Francisco tem 37 anos. Estaremos mesmo preparados para o arrumar na gaveta dos desperdícios?
(in Público, 20 de Outubro de 2006, por Carla Machado, professora universitária)



Eis um problema já considerado do dia-a-dia neste nosso pequeno país. Neste caso temos um homem que, apesar de tudo, não é tão velho quanto isso e que tem, além da experiência, estudos. Agora vamos imaginar o caso de homens e mulheres que, por exemplo, trabalham numa fábrica. Esta vai à falência. Toda a sua vida trabalharam lá. Têm quarentas e muitos e uma instrução escolar mínima. O que será dessas pessoas? Dizem-lhes que já são velhas para trabalhar, mas também são muito novas para se reformar. A maioria dessas pessoas tem filhos pequenos, ou estudantes de liceu. Têm uma renda para pagar e as restantes contas. Nestes casos, o/a marido/mulher não ganha tanto quanto isso, e pode acontecer que estejam ambos desempregados. Que podem fazer? Recebem o fundo de desemprego, uma quantia miserável tendo em conta que as despesas são cada vez mais elevadas. Sim, podem não passar fome, podem não viver debaixo da ponte, mas será que vivem de acordo com as suas necessidades? Penso que não. Muitas dessas pessoas podem acabar por conseguir arranjar trabalho, sim, ninguém disse que não, mas, essas raras excepções, são trabalhos onde recebem o ordenado mínimo ou pouco mais que isso e desempenham tarefas árduas, completamente diferentes daquilo que fizeram a vida toda ou que gostavam de fazer.
Dizem que querem acabar com a crise, mas os números do desemprego são cada vez mais elevados assim como as contas para pagar. Isso diminui o poder de compra. As pessoas compram menos, produz-se menos, fecham-se fábricas, pequenos estabelecimentos, pequenas empresas... mais gente para o olho da rua. Mais subsídios de desemprego para pagar, a crise aumenta. E isto torna-se num sistema rotativo.
O que interessa mesmo são pessoas acabadas de sair dos liceus (ou mesmo das faculdades), novas, sem experiência e que, de preferência, não conheçam grande parte dos seus direitos, dispostos a trabalhar mais por menos. Aqui o físico também interessa. Meninas “modelo” com decotes e umas boas pernas, por exemplo. Naturalmente que são só exemplos do que se passa genericamente. Felizmente existem empresas onde interessa a experiência e instrução escolar superior. Para todos os efeitos o factor idade continua a estar presente. Há quem defenda que é bom, a competitividade cria mentes brilhantes. Talvez. Pontos de vista...

5 comentários:

Anónimo disse...

Não posso estar de acordo com a realidade dos nossos dias, mas quem sou eu para fazer alguma coisa?Também hoje em dia temos de ter a noção que está dificil, tanto para novo como para velho!No entanto todos temos os mesmos direitos, não podemos colocar pessoas com experiência na gaveta, apenas pk este vai exigir mais! Precisamos de quem saiba andar para a frente com os negocios, sejam novos ou velhos todos têem os mesmos direitos!Abraço grande!

Bruno Moutinho disse...

NOTA: No último parágrafo estou a ser irónico de forma a retractar a realidade...

Elisheba disse...

Uma engrenagem cada vez mais num ciclo vicioso, crescente, que dificilmente se desmembrará!

é a era do "usa-e-deita-fora".As pessoas cada vez são mais maquinas a serem utilizadas, carne para cnhao, sem respeirto nem dignidade.As leis que os governos vao criando beneficiam o empregador.
Como ter direitos,actualmente?Eles existem, mas na pratica nao funcionam.

triste realidade.resta ter esperança e ser audaz.Nao dz o ditado:a sorte benefici os audazes?;D

Anónimo disse...

Continuo a gostar da forma como escreves e como descreves o que pensas sobre determinado assunto.
Continua a escrever assim..
Sobre o texto contiuno a achar que faz falta em todos os sectores, em tudo, mais humanismo entre os seres humanos, se é que percebem o quero dizer com isto em relação ao tema.

Anónimo disse...

Primo:

Adorei!
Tudo muito explicito e verdadeiro. Concordo contigo a 100%

beijos

emn***