sexta-feira, abril 04, 2008

Dias

Sempre soubera que o despertar seria o começo para um dia que não queria certamente ter, mas como as surpresas existem, arriscava sempre, até porque as obrigações a que se tinha comprometido assim o exigiam. Ainda de olhos cerrados e com o cérebro embrutecido pelas escassas horas de sono, desligava aquele velho despertador que emitia um som que não inspirava boas vontades. Achava arrepiante aquela invenção. Como poderiam as pessoas sujeitarem-se a estranhos instrumentos, distribuidores do chamado “mau humor matinal”. Até ele se tinha deixado consumir por esse hábito. Era o que as grandes cidades e a competição excessiva traziam, mau humor e noites mal dormidas. Estúpidas regras e putas daquelas que as tinham feito, ou cabrões se forem homens, pensava. E então arrastava-se pelo quarto, procurando num monte de roupa aquela que iria vestir, com a preocupação de não fugir a um estilo que ele próprio tinha traçado.
O primeiro contacto que tinha com o corpo era aquele arrepio provocado pela água quente do duche. Era também o primeiro, e talvez o único, prazer do dia. Sentir-se embebido na transparência e nos odores perfumados com que envolvia o corpo magro e sem linhas definidas. Dedicava sempre dois ou três minutos para ficar simplesmente debaixo do chuveiro e sentir os ombros serem massajados por um ser inexistente. Chegava a sentir-se apetecido, até ao momento em que lhe vinha a preocupação de desligar a água, limpar-se e vestir-se, com aquele pensamento irritante de “vou chegar atrasado”.
Depois saía, ao som de uma música qualquer escolhida na véspera que o fazia sentir-se mais animado que o ruído urbano. Já lhe bastavam os odores dos tubos de escape que arrotavam nuvens de fumo negro e os encontrões de gente mal educada, confinada à pressa de serem bactérias sociais.
E era sempre tudo igual, visto à transparência de não ser vidente e de não possuir uma bola de cristal bem polida. Cansava-o mais a semelhança dos dias que as tarefas dos mesmos. Mas talvez fosse diferente amanhã e sentia o desejo de lutar para concretizar essa mesma vontade. Ser cinzento como os outros com que se cruzava na rua não era propriamente algo que o iria fazer sentir-se concretizado, até porque já bastavam as construções que se debruçavam sobre si, na ameaça de ruir só pelo gozo de fazer correr mais um pouco de sangue que pudesse fervilhar na calçada suja pelos mendigos e engravatados, abrindo manchetes de jornais gratuitos e pagos, sempre com o sensacionalismo de criar aquela estranha felicidade de ter acontecido ao outro e ser tema de conversa por dois ou três dias, até algo mais entusiástico suceder.
Metade do dia era dedicado a ouvir ensinamentos pré concebidos e a registá-los para mais tarde os saber vomitar para uma folha qualquer para que alguém avaliasse todas as partículas, na ânsia de encontrar algo mais criativo para rasurar ou a ausência da palavra que ditara na oitava oração e que escapara ao aluno desatento. O que lhe valia eram os sorrisos dos colegas que adoptara e que o tinham adoptado, em cumplicidade de terem sonhos semelhantes e aventuras a partilhar, entre almoços no bar da faculdade ou num pita shoarma ou, em dias de Sol, por jardins verdes, com direito a sessões fotográficas ou leituras jornalísticas, de phones nas orelhas e comentários oportunos. A outra metade era a tensão laboral de cumprir um objectivo traçado pela sorte, adormecido na ausência do raciocínio intelectual ou algo mais prático. Era uma máquina ligada a um telefone e a um computador obsoletos, numa grande empresa, como sempre são, independentemente das condições que oferecem. Pensando bem, as condições eram melhores que as das crianças de um país subdesenvolvido qualquer, que cosem bolas de futebol e ténis, que mais tarde serão calçados por meninos endinheirados e consumidos pela necessidade da moda, para que possam ter direito a uma malga de arroz mal servida. E nós por cá, sub nutridos de inteligência.
É já na véspera de um novo dia que se tranca no seu pequeno quarto, percorrendo a consciência de não ser infeliz, mas de também não poder afirmar que é feliz. Embrenha-se na sua estranha vontade de ser algo mais e de partilhar a sua existência num terno abraço e num beijo apaixonado. Romantismos à parte, deseja que o sono chegue e, enquanto se faz difícil, troca palavras que cria e recria, muitas vezes na ansiedade de serem ouvidas.

2 comentários:

Inês Bexiga disse...

Belíssimo texto, sim senhora =)
Gostei de ler =D

Beijinhooo! *****

Anónimo disse...

Sempre que editamos palavras ou partilhamos uma pita shoarma ou sorrimos, sem mais a um inesperado desconhecido, numa cumplicidade qualquer, somos mais humanos. Estar vivo é fazer o caminho, sem se preocupar muito com a meta. Cada vez andas melhor,amigo.